Teologia no Jardim


O mundo já experimentou um momento em que a teologia ocupava o centro das atenções. Dentre as disciplinas, era chamada de rainha das ciências e muitos, entre ricos e pobres, desejavam receber o título de teólogo. Hoje, contudo, a realidade é bem diferente. A velha rainha das ciências parece aos olhos de muitos um saber desconectado da realidade a sua volta, algo como uma peça antiga a atrapalhar a nova mobília estrutural desse mundo neopagão que nos acostumamos a chamar de pós-moderno.

Esse desprezo para com a teologia se percebe até mesmo no ceio daquele ambiente onde, supostamente, ela deveria ser valorizada: a igreja. E a razão para isso é que, no entender de boa parcela daqueles que são igreja, a teologia é uma espécie de fermento esfriador da fé do povo de Deus, algo que apaga o fogo do Espírito Santo e torna os crentes a cada dia mais céticos.   

Conquanto seja esta a nossa realidade, a teologia continua intimamente ligada a existência humana em nossos dias, pois, para o bem ou para o mal, parece que o ser teólogo é algo que está no DNA da humanidade. Por esse motivo, acredito que tomar consciência de nossa vocação teológica é algo que pode nos ajudar a entrar em sintonia com a nossa existência nesse mundo que a cada dia se nos mostra cada vez mais estranho.

Um bom ponto de partida e chegada para uma reflexão sobre a teologia é justamente no início. Lá onde tudo começou. No berço de nossa existência. No jardim do Éden, o local de onde recebemos a informação da existência do primeiro ser humana a fazer teologia; a mulher que o homem havia recebido como sua auxiliadora.

A história do empreendimento teológico de Eva, a primeira teóloga da humanidade, segundo o relato bíblico, encontra-se registrada no primeiro livro da Escritura Sagrada:

Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. (Gênesis 3.1-5)

Esse texto, além de nos informar que a serpente, segundo apocalipse, símbolo do diabo (Ap 12:9), faz teologia, também nos traz uma definição muito clara da atividade teológica, isto é, teologia é refletir, pensar ou ponderar sobre Deus, como a serpente e Eva estavam fazendo ao debater se a ordenança divina dada ao primeiro casal de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e dom mal deveria, ou não, ser observada por Eva.

A exemplo do que vemos em Gênesis 3, temos na literatura bíblica muitos outros casos de homens e mulheres que também pensaram e expuseram o que pensaram a respeito de Deus. Numa das passagens dos Salmos, Davi, por exemplo, denuncia que nos seus dias já havia quem não acreditasse na existência de Deus: "Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam iniquidade; já não há quem faça o bem" (Sl 53:1). Por outro lado, esse mesmo Davi, em inúmeras poesias, demostra uma grande profundidade teológica. Num de seus Salmos mais conhecidos, ele pensa em Deus como um pastor que o acompanha pela jornada da vida (Sl 23). Noutro, compara-O a uma lugar de refúgio onde encontra abrigo (Sl 16.1).

Desse modo, podemos concluir que todo o ser humano é teólogo, até aquele que constrói a sua teologia para desacreditar a Deus, seguindo os passos das serpente, ou àquele que na sua reflexão teológica busca negar sua existência, como fez o insensato que Davi denuncia. Todavia, o nosso grande desafia, fugindo desses modelos, é encontrar uma teologia que nos leve a refletir adequadamente sobre o divino.

Na passagem que destacamos anteriormente também podemos encontrar resposta para esse nosso desafio. No diálogo entre a serpente e Eva, a despeito dos seus desvios, encontramos os elementos necessários para a construção de uma boa teologia. E quais são? A revelação e os desafios do tempo. A primeira, a revelação, fora dada a Adão e Eva pelo próprio Senhor: "da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás" (Gn 2.17). O segundo, o desafio, fora trazido pela serpente: "Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal" (Gn 3.4-5).

A partir desses ingredientes, Eva deveria construir uma boa teologia, isto é, uma reflexão adequada sobre Deus, o que certamente seria uma grande benção para a sua vida. Eva, contudo, como bem sabemos, decidiu trilhar um caminho diferente e edificou a sua teologia a partir da lentes desafiadoras da serpente, o que, finalmente, a levou amargar as tristes consequência de uma reflexão inadequada sobre Deus.

Essa mecânica elaborativa da teologia de Eva nos leva a perceber que a teologia não é uma obra divina, algo que desceu do céu para os homens, como se de Deus recebêssemos manuais de teologia sistemática ou coisa do gênero, mas uma construção humana  de caráter extremamente dinâmico, assim como são dinâmicos os desafios que encontramos pela estrada da vida. Todavia, a despeito de seu caráter humano e dinâmico, uma boa teologia, o que Eva não parece ter entendido, não pode ser construída desprezando-se os alicerces da revelação divina e suas consequências práticas para a vida.

É justamente nesse último aspecto, o prática, que percebemos as consequências desastrosas da teologia de Eva. Ela, embalada pelas lentes teológicas da serpente, "Vendo [...] que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si" (Gn 3.6-7). 

A teologia de Eva, portanto, é a reflexão teológica que leva a humanidade a queda, ou seja, a um estado de rebelião contra Deus e, consequentemente, a todo um desajuste do homem consigo e com o mundo a sua volta, o que temos ainda observado em nossos dias, numa espécie de reedição do primeiro capítulo da carta do apóstolo Paulo aos crentes de Roma.

Sendo assim, não nos resta outro caminho. Não podemos continuar nadando contra a correnteza da nossa existência. Como disse no começo de nossa reflexão, temos uma vocação teológica. Pensar sobre Deus está em nosso DNA. Carregamos a imagem do divino, ainda que desfigurada pela queda, em nosso ser. Por esse motivo, pensar corretamente sobre Deus numa lógica reversa aquela que ocorrera no Jardim não nos é uma opção, mas a única alternativa para uma existência que faça sentido e nos harmonize com o todo a nossa volta.

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Hebert Borges

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