O Deus que se revela


A ideia cristã do Deus que se revela tem sido, vez por outra, combatida ao longo da história. O deísmo, filosofia do século XVIII, por exemplo, “conquanto reconhecesse a revelação geral de Deus, negava a necessidade, a possibilidade e a realidade de qualquer revelação especial”1. A razão para tal entendimento é que os defensores do deísmo julgavam “a revelação geral de Deus como suficiente até mesmo para o decaído, e consideravam a ideia de sua insuficiência um menosprezo a sabedoria ou o poder de Deus”.2

Dessa feita, os deístas conceberam um deus distante que pouco se interessa por sua criação; uma ideia de deus que ficou muito conhecida por meio da metáfora do relojoeiro e do relógio, a qual Rubem Alves reconstrói de forma bem articulada em um de seus livros: 

Um relógio se faz com duas coisas apenas: peças materiais e energia. Pois era assim que o universo era feito: matéria e energia. Para entender o relógio não é necessário conhecer o relojoeiro que o fez. É possível que ele ainda esteja vivo, fumando cachimbo em alguma cidade da Suíça. Mas o relógio que ele fez, agora, não mais depende dele. Tem realidade independente. Pois para conhecer esse universo também não é necessário conhecer quem o fez, quem quer que tenha sido, onde quer que esteja escondido. E foi assim que o relógio, durante muito tempo, foi a máquina-modelo de um universo material-mecânico. Pobres dos textos sagrados que dizem: ‘No princípio era o Verbo’. Os relógios estabeleceram um novo evangelho que diz: ‘No princípio era a matéria3.

Sem sombra de dúvida, visto que muitos em nossos dias vivem como se Deus não se importasse com a sua criação, podemos dizer que os deístas, ao menos em termos práticos, representam uma boa parcela de nossa humanidade.

Um segundo grupo que tem combatido a crença cristã do Deus que se revela são os ateus. Segundo Rubem Alves, eles eram raros. “Tão raros que os mesmos se espantavam com a sua descrença e a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa”.4 Contudo, segundo esse mesmo autor, houve um tempo em que o encanto pela religião fora quebrado. Os resultado desse desencanto pela religião, como se percebe na citação abaixo, fora um desprezo para com Deus e a sua revelação.

O céu, morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apareceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre em lugares distantes com pessoas desconhecidas. A ciência e a tecnologia avançaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus não era necessário como hipótese de trabalho5.

A semelhança do deísmo e do ateísmo, outras correntes de pensamentos tem negado, em maior ou menor grau, algum aspecto da revelação divina como exposto pelas Escrituras Sagradas. A despeito desses posicionamentos, a tradição cristã tem defendido que Deus não é apenas o criador de todo o universo, mas também aquele que tem sustentado e interagido com o universo que criara ao longo de sua existência.

Muitas passagens da Escritura põem em relevo essa verdade. O Salmo 19, contudo, parece ocupar um lugar de destaque, haja vista que consegue conciliar num único texto a revelação de Deus na criação e a revelação de Deus em sua lei.

Alguns comentaristas tem combatido a unidade desse salmo por causa de suas partes distintas e dos diferentes nomes usados para Deus em suas respectivas partes. Para esses estudiosos, as diferentes partes do Salmo 19 revela uma dupla composição; a primeira apontando para a exaltação de Deus na natureza, a segunda apontando para a exaltação da lei de Deus.

O argumento de John MacArthur a favor da unidade desse salmo parece uma boa resposta a essa tentativa divisionista do texto davídico. Ele destaca que o nome Deus empregado na primeira parte do salmo aponta para o poder divino em conexão com a criação, enquanto o nome Senhor, presente na segunda parte, revela o seu caráter relacional.6

Desse modo, para MacArthur, Davi consegui descrever, no mesmo hino, Deus como o autor do mundo e da palavra e que essas são as duas maneiras pelas quais Deus tem-se revelado a humanidade7

Ainda segundo MacArthur, essa salmo davídico apresenta a seguinte estrutura8:
  1. A autorevelação de Geral de Deus no mundo (19.1-6)
    A. A declaração dos céus (19.1-4b)
    B. A proeminência do sol (19.4c-6)
  2. A autorevelação especial de Deus na Palavra (19.7-14)
    A. Os atributos da Palavra (19.7-9)
    B. O Valor da Palavra (19.10-11)
    C. A aplicação da Palavra (19.12-14). 
Seguindo essa estrutura, podemos fazer as seguintes observações a respeito do Salmo 19:
    1. O Deus que se autorevela na natureza.
As obras da criação apontam para o Criador, é isso que o salmista Davi está nos dizendo. A criação, na concepção davídica, diferente do que pensavam alguns filósofos antigos, não era eterna ou mesmo fruto do acaso, mas o resultado de uma mente inteligente e criativa; a mente de Deus. E é essa criação divina que, muito antes de Davi registrar qualquer palavra, já contava uma história a respeito do seu Criador. Isto é, o céu, o firmamento e até mesmo o sol anunciam, proclamam e revelam conhecimento do seu Criador.

O apóstolo Paulo na carta aos crentes de Roma, a semelhança de Davi, também reconhece essa revelação divina: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis”.9

Esse conteúdo revelado pela criação a respeito do Criador, como exposto por Davi no Salmo 19, não é veiculado por meio de palavras, mas, sem linguagem ou palavras, há um discurso sobre o Criador que se faz ouvir pelos quatro cantos da terra. Isso por sua vez nos comunica importantes características da revelação natural: acessibilidade e abrangência. Isso porque não existe um único lugar ou pessoa que não tenha acessado essa revelação.

Os verbos proclamar, anunciar, discursar e revelar empregados por Davi neste salmo nos levam a entender que o conteúdo dessa revelação, não é apenas acessível e abrangente, mas também claro e é justamente por esse motivo que o apóstolo Paulo encara aqueles que se recusam a reconhecer a Deus como revelado na Criação como indesculpáveis.

Outro aspecto da revelação natural que fica claro no salmo de Davi é a sua limitação. Podemos perceber isso contrastando as duas partes do salmo, isto é, a revelação geral de Deus na natureza e a revelação especial de Deus na Palavra. A primeira, embora capaz de tornar todos os homens indesculpáveis, como exposto pelo apóstolo Paulo, não apresenta um caráter redentivo.

Essa verdade tem sido destacada nas confissões reformadas como, por exemplo, a Confissão de Fé Batista de 1689:

A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e de obediência. A luz da natureza, e as obras da criação e da providência, manifestam a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de tal modo que os homens ficam inescusáveis; contudo não são suficientes para dar conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário para a salvação.10

Um segundo aspecto limitador da revelação geral é a sua impessoalidade, isso porque a revelação de Deus na natureza é uma revelação mediada pela obras da criação. Isto, por sua vez, nos traz um ensinamento extremamente importante: embora Deus se revele na natureza, Ele não pode ser confundido com a sua criação.
Associado aos aspectos não redentivo e impessoal da revelação geral, a Escritura ainda nos ensina que a Queda alterou tanto essa revelação como a sua receptibilidade por parte do homem.11

Dada essas limitações, o Deus que se revela decidiu manter um padrão maior e mais seguro de revelação, aquilo que conhecemos como revelação especial de Deus na Palavra.
    2. O Deus que se autorevela na sua Palavra.
William MacDonald, ao introduzir a segunda parte de seu comentário ao Salmo 19, destaca que “Há uma diferença [...] entre os dois livros de Deus. A criação revela o poder absoluto de Deus. A sua Palavra, em contrapartida, revela como ele entre em uma relação de aliança com o seu povo”12.

Essa diferença pontuada por William MacDonald apresenta um importante aspecto da revelação especial: sua exclusividade, pois, conquanto a revelação geral seja dada a todos os homens indistintamente, a revelação especial de Deus é apenas concedida ao seu povo, aqueles com quem Deus entrou em aliança.

Essa revelação comunica um conhecimento muito mais elevado e íntimo de Deus, o que exige dos eleitos, como reconhece João Calvino, uma dupla obediência, pois, “os gentios, a quem Deus falou somente pelas mudas criaturas, não têm justificativa de sua ignorância, quanto menos tolerável será a negligência de quem ouve a voz que procede de seus próprios lábios sacros!”13

Jonh MacArthur, num análise que faz desse salmo, reconhece a suficiência dessa voz divina: “O Salmo 19.7-14 é a afirmativa mais monumental, feita em termos tão precisos, sobre a suficiência da Escrituras”.14 Ainda segundo esse autor, nesse salmo, “Com poucas palavras, o Espírito Santo nos dá uma lista abrangente das características e benefícios da Escrituras”.15

William MacDonald faz uma síntese desses atributos e benefícios da Palavra de Deus. Segundo ele, “Em seu tributo à Palavra de Deus, Davi a descreve não somente como a lei do Senhor, mas também como o testemunho do Senhor [...] os preceitos do Senhor [...] o mandamento do Senhor [...] o temor do Senhor e os juízos do Senhor”.16 Esta Palavra, por sua vez, é perfeita, fiel, reta, pura, límpida, verdadeira, justa e permanece para sempre. Além disso, restaura a alma, dá sabedoria aos símplices, alegra o coração, ilumina os olhos e adverte o servo do Senhor.17
Essa forma como MacDonald abordou o Salmo 19, visto que demonstra a utilidade das Escrituras, nos faz lembrar o trecho da carta de Paulo ao jovem pastor Timóteo 3.16,17: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” e, dessa feita, destacar a inspiração divina como uma das marcas distintivas da revelação especial.

Essas Escrituras, como reconhece o salmista Davi, possuem um valor incalculável. “São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o destilar dos favos”.18 Além disso, como também já demostram as palavras de Paulo a Timóteo, as Escrituras são úteis para que venhamos a nos conduzir de forma sábia. Isto é, as Escrituras nos ajudam a discernias as nossas próprias faltas, a nos guardar da soberba, a evitar o uso de palavras inadequadas e a manter o nosso coração puro diante de Deus. 

3. Conclusão.
Nesse salmo vemos que Deus se revelou a humanidade por meio da revelação geral e especial. Na revelação geral, temos uma comunicação abrangente, mas não redentiva, de Deus por meio das coisas que foram criadas. Na revelação especial, Deus se revela de maneira pessoal e redentiva para o seu povo. O Salmo 19 mostra as características, valor e benefícios dessa revelação. Infelizmente, boa parte daqueles que frequentam as Igreja em nossos dias parece não reconhecer as características, o valor e os benefícios da Palavra de Deus.

1 BERKHOF, Louis. Manual de doutrina cristã. Trad. Joaquim Machado. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 27.
2 Ibid, p. 27.
3 ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência. 19ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 133, 134.
4 ALVES, Rubem. O que é a religião? Editora Brasiliense, São Paulo, 14ª edição, 1991, p. 7.
5 Ibid, p. 8.
6 Bíblia de Estudo MacArthur. Barueri, SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, p. 693.
7 Ibid, p 693.
8 Ibid, p 693.
9 Romanos 1:20.
10Confissão de Fé Batista de Londres de 1689, Cap I, Parágrafo 1.
11 BERKHOF, op. Cit., p. 28.
12 MACDONALD, William. Comentário popular da Bíblia: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Mundo Cristão, 2011, p. 388.
13CALVINO, João. Salmo, Vol 1. São Paulo. Edições Paracleto: 1999, p. 423.
14MACARTHUR, John. Nossa suficiência em Cristo. São José dos Campos-SP. Editora Fiel: 2013, p. 71.
15Ibidem, p. 72.
16 MACDONALD, op. Cit. P, 388.
17Idem.
18Salmo 19.10

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