O CONHECIMENTO DE DEUS
Estudo em Romanos 1
Hebert Leonardo Borges de
Souza
O teólogo sistemático Louis Berkhof afirma que “A
possibilidade de conhecer a Deus tem sido negada sobre diferentes bases”[1].
Esse ceticismo quanto a possibilidade de se conhecer a Deus, a despeito de suas
diferentes bases, tem como posicionamento básico a ideia “de que a
mente humana é incapaz de conhecer qualquer coisa que esteja além e por trás
dos fenômenos naturais, e, portanto, é necessariamente ignorante quanto às
coisas supersensoriais e divinas”[2].
Aqueles que advogam esse tipo de posição
ficaram conhecidos como agnósticos. Para eles, como observado pelo pastor Paulo
Anglada, “se Deus existe ou não é irrelevante, visto que, de qualquer modo, não
podemos conhecê-lo”[3].
Embora o agnosticismo seja, como se depreende
do próprio nome, o seguimento mais destacada na defensa da impossibilidade de
se conhecer a Deus, muitos outros seguimentos, em maior ou menor grau, caminham
na mesma direção. O panteísmo, por exemplo, visto que “repudia distinção tais
como corpo e alma, finito e infinito, Deus e o universo”[4] também defende, de alguma
forma, a impossibilidade de se conhecer a Deus, pois se “Deus é tudo e tudo é
Deus”[5] não temos como conhecê-lo. Do
mesmo modo, podemos falar do deísmo e sua crença “em um deus distante, que não
se relaciona com o homem”.[6]
Diante
dessas maneiras de pensar, é interessante observamos que os reformadores, em
certo sentido, falaram de Deus como um Ser que não pode ser compreendido.
Lutero, por exemplo, repetidamente fala de Deus como o Deus Absconditus (Deus oculto)[7].
Calvino, por sua vez, entende que “Deus nas profundezas do Seu Ser, é insondável. 'Sua essência', diz ele,
'é incompreensível; desse modo, Sua divindade escapa totalmente aos sentidos
humanos'”[8].
Encontramos ecos desse pensamento dos
reformadores na Confissão de Fé Batista de Londres de 1689 no primeiro
parágrafo de seu segundo capítulo, como se pode perceber nas palavras em
destaque:
O Senhor
nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, cuja subsistência está em si
mesmo e provém de si mesmo; infinito em seu ser e perfeição, cuja
essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo.
Ele é um espírito puríssimo, invisível, sem corpo, membros ou
paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível,
a qual nenhum homem é capaz de ver; imutável, imenso, eterno,
incompreensível, todo-poderoso; em tudo infinito,
santíssimo, sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as
coisas segundo o conselho da sua própria vontade, que é justíssima e imutável,
e para a sua própria glória; amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo;
abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniqüidade, a transgressão e o
pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; contudo
justíssimo e terrível em seus julgamentos, odiando todo pecado, e que de modo
nenhum inocentará o culpado[9].
A primeira vista, essas cousas parecem indicar
que o pensamento reformado, assim como o pensamento agnóstico, nega a possibilidade
de se conhecer a Deus. Contudo, devemos ter em mente que o que fora dito até o
momento a respeito do pensamento reformado é apenas a primeira face da moeda. A
outra face é a seguinte: “A teologia reformada sustenta que Deus pode ser
conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito
conhecimento de Deus, de modo algum”[10], haja vista que o finito não
pode compreender o infinito.
Nesse sentido, a incompreensibilidade de Deus, como
esclarece Paulo Anglada, é um termo teológico “usado para descrever a
impossibilidade de aprendermos ou compreendermos completamente a Deus. O termo
não significa que Deus não é conhecível, mas que o nosso conhecimento de Deus é
limitado”.[11]
A teologia reformada também nos ensina que o
conhecimento que temos de Deus tem a sua origem no próprio Deus, pois “Sem
a revelação, o homem nunca seria capaz de adquirir qualquer conhecimento de
Deus”.[12]
Essa verdade também é salientada por Barth por meio de uma interessante
ilustração. “Ele afirma que não existe nenhum caminho do homem para Deus, mas
somente de Deus para o homem, e diz repetidamente que Deus é sempre o sujeito,
e nunca um objeto de conhecimento”[13].
A Escritura nos ensina que esse caminho de Deus
ao homem se deu de duas maneiras; aquilo que na teologia denominamos de
revelação geral e especial. Por revelação especial, seguindo Berkhof, nos
referimos estritamente a palavra[14]. Já por revelação geral,
temos em mente a revelação de Deus na criação.
Dentre os textos bíblicos que destacam
conjuntamente a realidade da revelação geral e especial de Deus aos homens, o
primeiro capítulo da carta de Paulo aos crentes de Roma parece ocupar um lugar
de destaque. Esse texto é muito semelhante ao Salmo 19. Nele, como no salmo
davídico, temos registrado a verdade de que Deus se deu a conhecer por meio das
coisas criadas e de sua palavra. No entanto, diferente do poema de Davi, o
texto paulino começa destacando a revelação especial e isso no seu ponto mais
elevado, a pessoa de Cristo, a boa notícia encarnada, por meio de quem Deus
justifica o homem pecador. Além disso, também diferente do salmo de Davi, a
carta aos romanos nos informa o uso que o próprio Deus faz de sua revelação na
natureza.
Do contexto geral desse capítulo, tomando como
referência a ideia de que Deus se deu a conhecer, podemos fazer as importantes
observações:
1.
Deus se deu a conhecer por meio da revelação especial.
O apóstolo Paulo inicia a sua carta destacando
que fora separada pelo próprio Deus para anunciar o evangelho de Deus. O que é,
então, o evangelho de Deus? O evangelho de Deus, isto é, a boa notícia que Deus
tem anunciado aos homens, como nos diz o próprio apóstolo Paulo, é Jesus; o
Jesus prometido pelo Pai, profetizado no Antigo Testamento, encarnado na
história e pregado pelos apóstolos.
Segundo essa perspectiva, somos levados a
entender que Deus é um Ser que se comunica com a sua criação e que neste ato comunicativo
dá a conhecer o seu Ser e a sua vontade. A ideia de Deus como o primeiro
anunciador da boa notícia, como registrado em Gênesis 3.15, reforça esse argumento e nos mostra que,
desde o proto-evangelho, o conteúdo da mensagem divina é Jesus; uma mistura de
Ser e vontade revelados no conteúdo de uma mesma mensagem.
O que Paulo nos mostra, sem as sombras do
Antigo Testamento, é que conhecer a Jesus, conforme anunciado pela pregação
apostólica, é conhecer a auto-revelação divina do “poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu
e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho [Jesus],
de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé”[15].
É interessante
observamos como essas palavras do apóstolo Paulo se alinham com as palavras do
próprio Jesus: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”[16].
Interpretando os
termos vida eterna e salvação como tendo o mesmo significado, podemos dizer que
o evangelho, de acordo com Paulo e o próprio Cristo, pode ser definido como
Deus se dando a conhecer de maneira muito especial; Deus, em Jesus, onde habita
a plenitude de Deus[17],
revelando-se ao homem no tempo e no espaço como o Deus Todo -poderoso e justo,
como o Deus de graça e salvação, em quem os homens são levados a viver de
maneira justa e santa pela fé no próprio Filho de Deus.
Sendo assim, o
que o apóstolo Paulo nos mostra em Romanos 1, diferente dos agnósticos,
deístas, panteístas e outros seguimentos filosóficos ou religiosos que negam a
possibilidade de se conhecer a Deus é que é possível conhecer a Deus de maneira
especial por meio de Cristo Jesus, posto de que o próprio Deus decretou se
auto-revelar dessa maneira.
2. Deus se deu a conhecer por meio da
revelação geral.
Após destacar
para seus leitores o conhecimento de Deus revelado no evangelho, o apóstolo
Paulo passa a tratar do conhecimento de Deus revelado na natureza. Ele nos diz
que “o que de Deus se pode conhecer é manisfesto entre [os homens], porque o
próprio Deus lhes manifestou”.[18]
Ainda segundo Paulo, nas coisas criadas, desde o início do mundo, de maneira
muito clara, estão estampados os atributos invisíveis de Deus como o seu eterno
poder e a sua divindade[19].
Como já fora
destacado, as Escrituras nos ensinam que Deus não apenas se revelou de maneira
especial, mas também, de maneira geral, nas coisas coisas que foram criadas.
Segundo o argumento do apóstolo Paulo, como exposto anteriormente, Deus revelou
na criação alguns dos seus atributos, ou seja, qualidades inerentes de seu
próprio Ser. Esse é, portanto, um conhecimento abrangente, visto que está
exposto a toda a humanidade.
Desse modo, a
semelhança de Davi, Paulo reconhece que “Os céus proclamam a glória de Deus, e
o firmamento anuncia as obras das suas mãos”.[20]
Paulo, contudo, amplia o tema tratado por Davi, ao nos mostrar que a revelação
natural é também um instrumento de juízo de Deus.
Ele nos mostra
isso ao destacar que os homens, embora “tendo conhecimento de Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus
próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato”[21].
E, como se não bastasse, “Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e
mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis”[22].
O apóstolo Paulo
classifica tais homens como ímpios e pervertidos, isto é, irreverentes a Deus e
violadores da lei da justiça. A razão para isso é que tais homens, conscientes
e obstinadamente, trabalham para deter a verdade e promover a injustiça. Por
esse motivo é que Deus revela do céu a sua ira, ou seja, o seu juízo contra
toda a impiedade e injustiça.
A estrutura
verbal no texto paulino indica, claramente, que o juízo de Deus já é um
processo em curso no tempo presente[23];
que seu juízo, portanto, não está reservado apenas para o tempo do fim e que o
mesmo é indefensável.
Paulo ilustra
essa realidade por meio de três atos de Deus para com aqueles que conscientes e
voluntariamente desprezaram a sua revelação:
1)
“Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de
seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si”.[24]
2)
Deus os entregou “a paixões infames; porque até as mulheres
mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à
natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da
mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens
com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro[25].
3)
Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para
praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia, avareza e
maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo
difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos,
presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos,
sem afeição natural e sem misericórdia[26].
O texto de Paulo
nos apresenta uma imagem de Deus com a qual a nossa sociedade pós-moderna não
anda muito acostumada, haja vista que em nossos dias a tendência é ver a Deus
quase que exclusivamente pela via do amor. O movimento LGBT é talvez um dos
maiores movimentos pós-modernos com tal característica. Todavia, o Deus de
amor, como exposto por Paulo, é também o Deus que manifesta a sua justiça
contra toda a impiedade e injustiça dos homens que trabalham para deter a
verdade que o próprio Deus lhes deu a conhecer.
A partir da
realidade exposta pelo apóstolo Paulo, podemos declarar que a nossa realidade
não difere da realidade do mundo romano do primeiro século. Por outro lado,
como o mundo romano já estava sob juízo, não temos dúvida que o mesmo juízo
divino também tem se manifestado sobre os homens que detém a verdade pela
injustiça em nossos dias. Tais homens, entretanto, como observa o apóstolo
Paulo no último verso do primeiro capítulo da carta aos romanos, parecem
indiferentes ao juízo divino que já se manifesta sobre suas vidas, pois,
“conhecendo a sentença de Deus,
de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as
fazem, mas também aprovam os que assim procedem”[27].
O caos social dos tempos paulinos, bem como o
desajuste dos grandes centros urbanos de nossos dias, onde mais claramente se
percebe uma estilo de vida em contraposição a revelação de Deus na natureza,
não deixam dúvidas, portanto, que Deus tem estado irado com a humanidade.
A despeito dessas informas, o que se depreende
do texto paulino, a semelhança daquilo que pode ser observado no Salmo 19, é que a revelação de Deus na natureza não
pode romper a rebeldia humana a ponto de trazer o pecador arrependido ao seu
Senhor. Esse poder, como vimos está no evangelho de Cristo Jesus, o qual é o
poder de Deus para mudar a realidade de vida tanto de judeus quanto de
gregos.
Conclusão:
Encerramos esse texto, destacando que Deus
decidiu dar-se a conhecer por meio de duas revelações: a revelação geral e a
revelação especial. Como vimos, o capítulo primeiro carta de Paulo aos romanos
nos apresenta essas duas realidades, isto é, o Deus que se deu a conhecer por
meio da natureza e do evangelho. Esse dois modos pelos quais Deus se revelou
demonstram claramente que a natureza, embora manifeste conhecimento de Deus,
não apresenta um conhecimento capaz de salvar, de dar vida, de tornar o homem
justo diante de Deus, mas apenas de torná-lo indesculpável diante de Deus. O poder
para fazer o homem volar-se para Deus, inclusive olhando para a natureza de
modo adequado, encontra-se revelado no evangelho de Deus, o qual o próprio Deus
tem dado a conhecer ao seus eleitos.
[1]BERKHOF,
Louis. Teologia Sistemática. 3ª Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30.
[2]Idem.
[3]ANGLADA,
Paulo Roberto Batista. O Ser e Obras de Deus. Anamindeua. Knox Publicações,
2007, p. 25.
[4]Idem.
[5]Idem.
[6]Idem.
[7]BERKHOF,
op. cit. p. 29.
[8]BERKHOF,
op. cit. p. 29.
[9]Confissão
de Fé Batista de Londres de 1689, cap. II, parágrafo 1.
[10]BERKHOF,
op. cit. p. 30.
[11]ANGLADA,op.
cit. p. 28, 29.
[12]BERKHOF,
op. cit. p. 33.
[13]BERKHOF,
op. cit. p. 33, 34.
[14]Ibid,
p. 34.
[15]Romanos 1.16, 17.
[18]Romanos
1.19.
[19]Romanos
1.20.
[20]Salmos
19.1.
[21]Romanos
1.21.
[22]Romanos
1.22, 23.
[23]Tempo presente, voz passiva e modo
indicativo do apokaluptw.
[24]Romanos
1.24.
[25]Romanos
1.26, 27.
[26]Romanos
1.28-31.
[27]Romanos
1.31.
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